sábado, 1 de dezembro de 2007

Tempo de tolerância

O orgulho hetero, o tal que surgiu numa publicidade de uma marca de cerveja, é um conceito tão vazio como o orgulho gay, ou o orgulho de ser português, de ser europeu, branco, negro, ou outra classificação qualquer. O orgulho por se pertencer a uma construção indefinida, que tem tanto de arbitrária como de heterogénea, não pode cimentar-se em nada de concreto. Partilhar a orientação sexual, a nacionalidade e a cor da pele não pode nunca ser mais do que isso. Não é possível estabelecer uma pertença identitária a uma categoria que não tem identidade própria, que não tem cultura própria, que não partilha necessariamente normas, valores, atitudes e práticas.

Na sequência das reacções suscitadas, a Tagus retirou a sua campanha e, na quinta-feira, Eduardo Cintra Torres manifestou a sua discordância com esta decisão (via Womenage a Trois). Não vou aqui discutir se a Tagus fez bem ou mal, assim como não pretendo discutir a felicidade da ideia publicitária nem a legitimidade das reacções. O que me chamou mais a atenção foi esse raciocínio de ECT, segundo o qual “Quando se inverte a espiral de silêncio pode ocorrer uma forte libertação de recalcamentos. O tempo de antena gay nos media, que muita gente percepciona como superior à sua presença na sociedade, poderá ser perigosamente contraproducente para a tolerância da sociedade.”

Cintra Torres começa o seu artigo de opinião precisamente por defender que apenas “fascizantes ou fascistas vocalizam oposição à nova atitude face à homossexualidade”. Mas, afinal, não são só os fascistas e os fascizantes que se podem opor à nova atitude perante a homossexualidade. Aparentemente, qualquer pessoa sempre disposta a prestar mais atenção às sensibilidades que se ofendem para romper preconceitos, em detrimentos das sensibilidades daqueles que constituem o objecto de preconceito, também oferece o seu pequeno contributo.

Nem todas as tolerâncias sociais se desenvolvem ao mesmo ritmo. Porém, quando estão em causa processos de exclusão social derivados de preconceito e atavismo, não existe qualquer justiça em esperar pela mudança de mentalidades. A escravatura acabou, as mulheres votam e têm acesso a carreiras profissionais de relevo, os povos africanos, asiáticos e americanos lograram a auto-determinação. Os homossexuais também terão direito ao seu “tempo de antena gay nos media”, seja lá o que isso for, e sem que apareça sempre alguém a pedir cuidado e mais tempo para a sociedade se adaptar. A adaptação surge com o conhecimento e o conhecimento precisa de contacto.

Adenda: A Helena Araújo, nos comentários, com a pertinência e simpatia que se lhe conhecem, chamou a atenção para o facto de o orgulho gay ter mais que ver com o orgulho de lutar abertamente contra o preconceito social. Quando eu escrevi que o orgulho gay era um conceito tão vazio como o orgulho hetero queria dizer, apenas e só, que é absurdo ter orgulho na orientação sexual. Fica feito o esclarecimento e a admissão da má formulação escolhida.

3 comentários:

Helena Araújo disse...

Uma pequena achega: parece-me que o "orgulho gay" não é o orgulho de ser gay mas o orgulho de ter tido a coragem de sair do armário. O orgulho de alguém que assume a sua condição de "guerreiro" resistente a uma ordem social que lhe nega a existência e lhe recusa a dignidade.

Outra achega: compreendo parte da argumentação de Eduardo Cintra Torres, quando se refere ao recalcamento e à tolerância. Vivi isso em San Francisco, onde há uma fortíssima comunidade gay, e uma pessoa quase tem vergonha de ser heterossexual. Para mim, foi enriquecedor passar para o outro lado desta relação assimétrica de forças...

Não me digam que os gays exageram com o seu lobby, pressões, infiltrações e manifestações.
Esta discussão leva-me sempre ao mesmo poema de Brecht:
"do rio que tudo arrasta
se diz que é violento
mas ninguém diz violentas
as margens que o oprimem"

Miguel Silva disse...

Ok, o orgulho gay, visto dessa forma, não tem nada que se lhe diga. Não é "orgulho de ser gay", é o orgulho do "resistente a uma ordem social que lhe nega a existência e lhe recusa a dignidade". Não é especificamente gay, porque não há nada que seja especificamente gay nem nada que seja especificamente hetero. É humano.
Aquilo a que me referi é o orgulho na orientação sexual, que me parece completamente absurdo.

Quanto ao resto, continuo sem compreender, ou melhor, sem aceitar a justiça do raciocínio do ECT. O que me apetece dizer é: quem não está preparado, prepare-se. E esses receios lembram um bocado outros receios em relação ao fim de imposições injustas e preconceituosas, que não passam de medidas conservadoras encapotadas como preocupações sociais.

Helena Araújo disse...

"pertinência e simpatia"?
(ando há dois dias a pensar se isto é ironia...)

Fiquei a pensar nesta história: haverá alguém que sinta orgulho de ser heterossexual? Ou de ser branco?
Se sinto alguma coisa em relação a essas minhas condições, é alívio: a minha vida é, à partida, mais fácil.

Deixa-me introduzir um elemento que não tem sido apontado: parece-me que está em curso uma guerra entre os defensores da ordem heterossexual e os "gay pride".
Os primeiros temem que "eles tomem conta disto tudo". Dizem que "eles invadiram as escolas e estão a tentar contaminar os nossos filhos" (deram-me até o exemplo de um professor que disse aos alunos que os homossexuais têm mais sucesso profissional e económico), "eles estão a infiltrar todas as instituições", etc.
São pessoas que entendem que a homossexualidade é uma doença de certo modo contagiosa, e que é importante proteger os seus filhos das influências nefastas.

Independentemente de eu estar de acordo com isto, parece-me que é fundamental e urgente fazer um debate público honesto - não uma guerra dos sexos, mas um espaço onde se possa falar abertamente dos medos e do sofrimento. Sem impor moralidades nem ideologias.

Que achas de abrirmos um blogue novo só para esse tema? Super-censurado, sugiro eu: só aceitamos textos e comentários de qualidade.