No Verão passado, quando uma criança desapareceu do aldeamento turístico em que os pais se encontravam a gozar férias, não faltou quem logo apontasse o dedo acusador aos progenitores. Perante o desespero evidente de dois pais, houve quem não contivesse o seu moralismo e clamasse contra a sua incúria. Este mês, a intervenção policial para pôr cobro a uma situação de assalto com sequestro de dois reféns terminou com a morte de um dos assaltantes e o outro ferido com gravidade. Louvou-se a autoridade, o tiro certeiro e o exemplo que dará que pensar aos meliantes em futuras situações da mesma natureza. Pouco tempo depois, a GNR baleou mortalmente uma criança, numa perseguição a uma carrinha onde se encontravam também dois indivíduos apanhados em flagrante a roubar material de construção. Perante a morte de um rapaz de 12 anos, familiar dos dois ladrões, logo se perguntou o que estava o rapaz ali a fazer e que país é este em que se leva uma criança para um roubo. Umas semanas antes, um tiroteio num bairro social, do qual espantosamente apenas resultou um ferido ligeiro, fez estalar a indignação contra esse bando de oportunistas a viver das prestações sociais, que tanta ajuda recebem sem nada dar em troca. Grupos que, disse-se na altura, cultivam a exclusão e a miséria em que vivem e que são incapazes de se inserir e relacionar normalmente com o resto da sociedade.
O que todas estas histórias e os comentários que motivaram têm em comum é um manifesto desprezo pelo ser humano. Perante o sofrimento alheio, quer seja o da família de uma criança desaparecida, quer seja o da família de uma criança morta, quer seja o de duas comunidades aterrorizadas pela pequena e média criminalidade perpetrada por uma dúzia de indivíduos, quer seja, finalmente, o dos próprios criminosos que vêm decretada a sua sentença sem a interferência de qualquer tribunal, perante tudo isto há sempre quem, com toda a crueldade do mundo, consiga dizer: “estavam a merecê-las”. Esta gente de juízo fácil está cheia de certezas, cheia de pequenos moralismos para dispensar aos outros, cheia de si mesma, cheia de superioridade, cheia de uma convicção enraizada do abismo que as separa dos “outros”. Os “outros” são “pretos”, são “ciganos”, são “brasileiros”, são “estrangeiros”, são “criminosos”, são “pobres”. Não são pessoas completas. São um conjunto de abstracções e de preconceitos sociais. Não estão num patamar abrangido pelo direito inalienável à dignidade humana.
Não há sociedades sem crime e sem criminosos. O mais preocupante não é, obviamente, uma sociedade em que a criminalidade até pode ser mediática, mas está longe de estar fora de controlo. O preocupante é uma sociedade que quando olha para os seus membros não vê indivíduos, as suas acções e os seus laços sociais e em que o desprezo pelo próximo está tão disseminado, desde o cidadão anónimo à elite fazedora de opinião. Numa sociedade assim, o maior perigo vem de dentro.
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