Em mais um dos seus exercícios de paciente dedicação aos blogues, a Helena traduziu um artigo do Süddeutsche Zeitung sobre o projecto de construção da Europa. Talvez não exista, por esta altura, tema político mais actual e importante do que a consolidação política da União Europeia. Mas o texto que a Helena traduziu enferma de uma exagerada desculpabilização dos políticos e de uma exagerada diabolização dos eleitores irlandeses.
É preciso que se diga que o argumento dos 862 415 irlandeses que estão a travar os 490 milhões de europeus é pura demagogia. Não fossem os irlandeses os únicos a referendar o Tratado e logo se veria, com mais propriedade, quantos europeus poriam travão à Europa. Este é um juízo que é independente da valia do referendo para ratificação do Tratado ou da necessidade deste último. Mesmo sem considerar se o Tratado está bem elaborado ou não, se o processo está a ser bem gerido ou não, se a sua ratificação deve depender de métodos directos ou representativos, não se pode fingir que há apenas 800 mil irlandeses dispostos a dizer “não”. Em 500 milhões de consciências, custa a acreditar que mais de 99,8% delas estejam de acordo quanto ao presente e futuro da UE.
As campanhas são feitas pelos políticos e pelas suas máquinas de propaganda. Se na Irlanda se andou a discutir questões paralelas e alguns se aproveitaram para envenenar o processo com o seu populismo e os seus ajustes de contas internos, isso não pode ser certamente imputado aos eleitores. Essa culpa não morre solteira e se parece fácil atribuir as responsabilidades aos políticos é porque, neste caso, são eles efectivamente os principais, senão exclusivos, responsáveis. O envolvimento toca a todos, mas uns têm mais instrumentos à sua disposição para fazer as coisas de outro modo do que os outros.
Por outro lado, esta visão maniqueísta de “connosco ou contra nós”, tão popular depois do 11 de Setembro, é redutora e simplesmente injusta. Ser contra o Tratado não significa ser contra a Europa, nem contra o alargamento, nem contra o aprofundamento da integração económica e política. Ser contra o Tratado pode apenas significar que se pretende uma construção europeia diferente. O fim da História da Europa não está nem na recusa do Tratado nem na sua aceitação acrítica.
A Europa precisa de uma redefinição do seu processo de integração política, o que deu origem à defunta Constituição e, por sua vez, ao actual Tratado. A integração económica atingiu um nível de sofisticação muito elevado e, através das relações de mútuos benefícios que tem gerado, dá o cimento utilitarista para que o projecto da UE ambicione outros objectivos. Não é credível que algum dos países que a integram se imagine fora dela num futuro próximo, nem mesmo a sempre desconfiada Grã-Bretanha, nem se deve empurrar a Irlanda para o lado como um entrave indesejável. Construir uma integração política a 27 e preparada para continuar a ser alargada e aprofundada é um desígnio incontornável da UE, mas não se afigura tarefa fácil. Há uma diferença de substância entre a simplicidade e o simplismo. O projecto da UE, por muito bonito que fosse, dificilmente poderia residir apenas na primeira e não precisa definitivamente da segunda.
1 comentário:
Miguel,
Uma parte do que queria dizer já está escrita no meu blogue.
http://conversa2.blogspot.com/2008/06/tratado-de-lisboa-um-ponto-da-situao.html
A recusa dos irlandeses inviabiliza a entrada em vigor em Janeiro de 2009, e por isso se fala nos termos de "ser connosco ou contra nós": os restantes países, que acham fundamental que o Tratado entre em vigor o mais depressa possível, estão a ser travados pela Irlanda.
Achas que os irlandeses, ao votar "não", estavam a recusar este Tratado para dar a todos os países a oportunidade de recomeçar o processo e inventar uma Europa melhor?
Ou estavam, como consta, (1) sem saber ao certo o que estava em causa ("vote no because you don't know") e (2) preocupados com o casamento dos homossexuais e o aborto?
Quantos dos restantes 490 milhões estão realmente revoltados com o tratado? Nos países onde já foi aprovado não se notou uma resistência popular tão grave que justificaria a sua revisão, ou o adiamento da sua entrada em vigor.
No fundo, todo o processo foi muito infeliz.
Primeiro, porque a recusa de um país inviabiliza o processo global - preferia que estivesse claro à partida que a recusa de um país não o vincula ao Tratado, mas não inviabiliza este para os países que o aprovarem.
Depois, porque se deixou que o referendo irlandês, vital para toda a Europa, ficasse refém de politiquices nacionalistas.
Até que ponto é que o protesto irlandês é significativo?
Será que, se a pergunta tivesse sido colocada de outra forma na Irlanda, e se o debate tivesse sido conduzido com mais seriedade, o resultado seria o mesmo?
E agora: recusamos o Tratado que pretendia mais democracia na Europa, e continua tudo como está (e está muito mal), enquanto vamos calmamente pensando numa construção europeia diferente?
Ou avança quem quer avançar, enquanto que na retaguarda se discutem alternativas para alterar este Tratado e reunificar mais tarde os 27 sob um Tratado comum?
O que é que há de profundamente errado neste Tratado?
Será possível fazer um Tratado melhor que este, que já é fruto de difíceis negociações entre todos?
Há uma forma melhor de construir a Europa?
Qual?
E, sobretudo: a aprovação deste Tratado inviabiliza para sempre a construção de uma Europa melhor?
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