quarta-feira, 12 de março de 2008

O gosto e a qualidade

Existe um pequeno problema com a adenda do João Tunes ao seu post A Mania Fixada dos 3 F. O raciocínio explicita uma dicotomia acentuada entre massas e vanguarda cultural. Essa dicotomia não existe nesses moldes. Nem eu sou a pessoa indicada para escrever um texto de sociologia do consumo cultural nem este blogue precisa de mais textos impenetráveis que ninguém lê, mas as lógicas do consumo respeitam mais um ordenamento em espiral do que uma divisão dicotómica. As diversas classes sociais aspiram ao padrão de consumo das classes que lhe estão imediatamente acima e procuram afastar-se dos padrões das que lhes estão imediatamente abaixo. Para que fique bem claro, este acima e abaixo são usados devido ao suporte metafórico da espiral. Não estou, ainda, a fazer juízos de valor. Posso gostar do livro A, do filme B, do programa C e da reportagem D. Outros discordarão. Nada de especial. São meras preferências.

O juízo de valor começa quando se propõe uma hierarquia baseada num qualquer conjunto de critérios. Apesar da crescente facilidade de segmentação do mercado e de difusão de conteúdos, as escolhas têm de ser feitas. Voltando ao nosso caso, abrir telejornais com notícias de futebol ou com a maior manifestação contra o governo não pode ter o mesmo valor, sob pena de cairmos num relativismo niilista. O número de simpatizantes do SLB e do SCP não é um argumento forte porque, se admitirmos que todos os simpatizantes de um clube se interessam de forma homogénea pelo resultado do fim-de-semana, nada nos impede de afirmar que todos os cidadãos de um país se interessam de forma homogénea pelos acontecimentos que influenciam a sua governação.

Os conteúdos noticiosos, a abordagem jornalística e a hierarquia de prioridades são passíveis de ser julgados. Se as audiências são um indicador de preferência mas não de qualidade, então como medir esta última? Julgo que a resposta se encontra em critérios de relevância objectiva dos assuntos e em rigor de tratamento da informação. Parece-me inquestionável que, objectivamente, o que está relacionado com a governação tem primazia sobre o que se relaciona com o desporto. A política e o entretenimento não estão ao mesmo nível de importância. Se uma boa parte das pessoas prefere as reportagens sobre o Benfica e o Sporting, isso é sobretudo um problema de cidadania e de demissão das responsabilidades cívicas, e não um problema que ponha em causa a hierarquia valorativa que propus. Não somos um povo de mandados, nem de tontos, nem de elites e de massas. Somos um país com fracos níveis de maturidade democrática e de cultura cívica, em que a ética e a qualidade não são suficientemente valorizadas.

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